O Julgamento com Perspectiva de Gênero como Método Interpretativo: Aplicações e Desafios para a Magistratura

Julgar com perspectiva de gênero significa reconhecer que desigualdades estruturais  influenciam não só os fatos, mas a própria interpretação e aplicação do Direito

Anne Wendler

Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, é um documento que sistematiza diretrizes interpretativas destinadas a magistradas e magistrados, com o objetivo de incorporar, de forma consciente e metódica, a realidade das desigualdades de gênero na atividade jurisdicional.

Não se trata de inovar ou criar um direito “paralelo”. O protocolo afirma, com clareza, que julgar com perspectiva de gênero é um método interpretativo legítimo, tal como o são a analogia, a dedução ou a aplicação de princípios. Sua premissa é simples, mas profunda: o Direito não é neutro, tampouco são neutros os conceitos jurídicos que orientam a solução dos conflitos. Julgar com perspectiva de gênero significa, portanto, reconhecer que desigualdades estruturais — muitas vezes naturalizadas — influenciam não só os fatos, mas a própria interpretação e aplicação do Direito.

O Protocolo é fruto de uma construção institucional iniciada em 2018, sob a presidência da ministra Carmen Lúcia, quando o CNJ aprovou as Resoluções 254 e 255, que instituíram políticas judiciárias voltadas ao enfrentamento da violência contra a mulher e ao incentivo à participação feminina no Judiciário. Em 2021, o Protocolo foi publicado, e, em 2023, sua observância foi determinada pelo CNJ, por meio da Resolução nº 492.

O Protocolo oferece um passo a passo dividido em sete etapas do processo decisório, propondo perguntas-guia que permitem que a desigualdade deixe de ser um “pano de fundo” e se torne elemento ativo da análise jurídica.

Os sete passos interpretativos:

1. Primeira aproximação com o processo: já no primeiro contato com os autos, o julgador deve identificar se o caso envolve, ainda que de forma indireta, alguma assimetria de gênero. Muitas vezes, disputas aparentemente “neutras” – como ações de inventário ou indenizações trabalhistas – escondem dinâmicas discriminatórias. Um exemplo citado no próprio Protocolo é a diferença salarial histórica entre homens e mulheres: se não for considerada na fixação de indenizações, há o risco de reforçar essa desigualdade.

2. Aproximação dos sujeitos processuais: a forma como o processo é conduzido importa. É preciso garantir a compreensão dos atos processuais, observar vulnerabilidades (como lactação, maternidade ou exposição emocional) e evitar linguagens técnicas ou ambientes que possam constranger testemunhas e partes. O direito à escuta respeitosa é elemento essencial de um julgamento equitativo.

3. Medidas especiais de proteção: o juízo deve avaliar se há risco à integridade física, emocional ou social das partes, e agir de forma célere e cautelar. O processo não pode se transformar em mais uma etapa de sofrimento ou revitimização.

4. Instrução processual: um dos pontos mais sensíveis, especialmente em ações que envolvem assédio, violência ou disputas de guarda. O Protocolo alerta para perguntas que reproduzem estereótipos (como questionar o comportamento da mulher como forma de relativizar a violência), bem como para a necessidade de garantir que peritos, assistentes sociais e demais auxiliares da Justiça estejam capacitados para compreender essas dinâmicas.

5. Valoração da prova: reconhecer que o ônus probatório pode recair de forma desigual sobre a vítima é essencial. Situações como abuso sexual, assédio no ambiente de trabalho ou abandono afetivo geralmente ocorrem longe de testemunhas e geram medo de retaliação. Assim, a palavra da vítima e os contextos sociais precisam ser devidamente considerados.

6. Identificação do marco normativo e precedentes: julgar com perspectiva de gênero exige que o magistrado e magistrada atentem não apenas à legislação nacional, mas também aos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, assim como a jurisprudência da Corte Interamericana. 

7. Interpretação e aplicação do direito: o passo final é talvez o mais transformador. Interpretar com perspectiva de gênero é abandonar a abstração e reconhecer que conceitos jurídicos como “intenção”, “produtividade”, “hierarquia” ou “dano” são construídos socialmente. 

O Protocolo também nos alerta para normas que parecem neutras, mas que produzem efeitos desiguais na prática. Um caso concreto analisado pelo STF envolveu a antiga norma da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que proibia a doação de sangue por homens que mantiveram relações sexuais com outros homens. A justificativa técnica escondia um estereótipo preconceituoso, desconectado de evidências científicas. A Corte, ao julgar a ação, reconheceu a violação ao princípio da igualdade. 

Outro exemplo está no ambiente empresarial, quando a “alta produtividade” é critério exclusivo para promoções. Esse critério ignora que mulheres, muitas vezes, têm sua jornada impactada por responsabilidades domésticas que não são igualmente distribuídas. 

O resultado é uma discriminação indireta, que perpetua o desequilíbrio na ocupação de cargos de liderança. O mesmo se aplica às ações de reparação por abandono afetivo. Ao se negar indenizações com base na ausência de dolo ou na suposta inutilidade da reparação, o Judiciário naturaliza o abandono paterno e invisibiliza o custo emocional, material e social arcado, em geral, pelas mães.

Conclusão: o papel transformador da jurisdição

Adotar uma perspectiva de gênero no julgamento não significa romper com o princípio da imparcialidade. Ao contrário, é reconhecer que a aplicação “neutra” do Direito, quando ignora as desigualdades históricas, acaba sendo profundamente parcial.

O Protocolo do CNJ oferece um caminho metodológico, constitucionalmente orientado, para que a magistratura atue não como reprodutora das assimetrias sociais, mas como agente de superação de estigmas, exclusões e invisibilidades jurídicas.

Seu uso deve ser incentivado não apenas nas Varas de família ou nos Juizados de violência doméstica, mas também no Direito do trabalho, empresarial, cível e penal. A justiça com perspectiva de gênero é uma justiça mais próxima da realidade e, por isso, mais legítima, mais democrática e mais comprometida com os direitos fundamentais.

Com mais de 9 mil decisões proferidas com base no Protocolo, segundo o Banco de Sentenças e Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, já se percebe uma mudança de cultura. Ainda há espaço para avanços importantes na consolidação de uma atuação judicial cada vez mais comprometida com a superação das desigualdades e que reforce o papel do Judiciário como agente de transformação social.

Anne Wendler é sócia no escritório Rücker Curi – Advocacia e Consultoria Jurídica.