A negociação entre o Mercosul e a União Europeia (UE) sobre direitos de propriedade intelectual, de especial sensibilidade política, não terminou bem na semana passada e frustrou os países do Cone Sul, conforme o Valor apurou.
Os europeus chegaram a Brasília colocando muita pressão para avançar na negociação de indicações geográficas, as quais conferem proteção a nomes de produtos que ampliam o valor agregado no comércio internacional. Bruxelas argumentava que a flexibilidade do Mercosul nessa área poderia dar certa tranquilidade a protecionistas como França e Irlanda na parte agrícola.
A UE tem mais de 3.300 produtos alimentares e bebidas com proteção específica de origem geográfica, incluindo Parma, da Itália e Cognac, da França, contra imitação ou evocação de seus nomes. As vendas de marcas protegidas alcançam dezenas de bilhões de euros por ano.
Em Brasília foi desenhado um “road map” sobre como resolver conflitos envolvendo indicações geográficas. As discussões avançaram também sobre marca registrada, design, direitos de autor. A avaliação é de que o Mercosul se engajou de boa fé, avançando no rumo que os europeus queriam, ao mesmo tempo em que procurou salvaguardar interesses essenciais do bloco do cone sul.
No entanto, após dois dias de intensas negociações, quando foi a vez de o Mercosul querer discutir um tema delicado para o bloco – patente e preservação da saúde pública -, a delegação europeia não mostrou a mesma flexibilidade. Retrucou que não tinha autorização de Bruxelas para tratar do tema nem ali nem na rodada seguinte de negociação, em novembro.
A irritação do Mercosul foi grande. Para o Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, não é só a produção de genéricos, mas todo o arcabouço de flexibilidades previstas no Acordo de Trips (Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio) que tenta preservar na negociação. Inclui licenciamento compulsório (quebra de patentes) e o reconhecimento do caso especial da saúde pública. A suspeita no Mercosul é que a UE quer deixar o tema para o último momento, em dezembro, e tentar empurrar um compromisso desfavorável ao bloco sobre patentes.
A irritação é ainda maior porque, em 2010, numa cúpula UE-Mercosul, o Mercosul já tinha avisado que não iria negociar com base no “Trips plus”, ou seja, nada além do que está previsto no Acordo de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio, da Organização Mundial do Comércio (OMC); não estaria em jogo nada relacionado a saúde pública, mas discutiria proteção a indicações geográficas.
Mais recentemente, porém, a negociadora-chefe europeia para o Mercosul, Sandra Gallina, alegou que precisava discutir tudo para dar satisfação a suas empresas.
Em meio à frustração, o Mercosul fez um alerta: o que não for negociado com tempo suficiente não vai entrar no capítulo de propriedade intelectual. E reafirmou que questão de saúde pública não estava na mesa de negociação, e nem aceitava prolongar proteção de patente por causa de procedimentos administrativos como os Certificados Complementares de Proteção (CCP).
Para a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, os CCPs são algo a evitar, considerando que se trata de monopólio adicional, estendendo a proteção medicamentos além do prazo de 20 anos de vigência da patente e evitando a concorrência dos genéricos. Elevam preços de medicamentos inacessíveis que prevalecem por períodos de tempo mais longos, ameaçando a sustentabilidade dos sistemas nacionais de saúde e atrasando o acesso dos pacientes a inovações médicas vitais.
Estudo de pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/Fiocruz calcula que o governo brasileiro desembolsará até R$ 1,9 bilhão a mais por ano só com a compra de medicamentos usados nos tratamentos de HIV/aids e de hepatite C, caso as propostas da UE sejam aceitas pelos países do Mercosul.
A soma corresponde aos custos anuais do tratamento de aproximadamente 60 mil pessoas com hepatite, com medicamentos de última geração, e mais de 57 mil pacientes com HIV. Essa é só a ponta do iceberg, já que a pesquisa se restringe aos 25 medicamentos usados no tratamento de apenas duas doenças.
Em comunicado, Gabriela Chaves, pesquisadora do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da ENSP, da Fiocruz, considera que a UE tenta aumentar os padrões de proteção, com a adoção de medidas chamadas Trips-plus, garantindo maior exclusividade de mercado para seus laboratórios, afetando diretamente a área de medicamentos.
Conforme o estudo, a proteção da propriedade intelectual no Brasil já é bastante ampla. Diz que, em 1996, o Brasil se adiantou à obrigação assumida na Organização Mundial do Comércio (OMC) e aprovou a atual lei que concede proteção de patente para medicamentos, o que poderia ter sido feito só nove anos mais tarde.
Para Gabriela Chaves, quem paga essa conta, que fica ainda mais alta com as medidas Trips-plus, é o Sistema Único de Saúde (SUS). Considera que está em jogo nas negociações a sustentabilidade do sistema público de saúde, já que medidas que fortalecem o monopólio de tecnologias essenciais em saúde possibilitam que os laboratórios pratiquem preços muito altos, ameaçando o princípio da universalidade do SUS.
Em 2007, o governo quebrou a patente do medicamento Efavirenz, o que possibilitou a importação e a posterior produção local de versões genéricas de 67% a 77% mais baratas do que o preço do produto patenteado. O mesmo ainda não aconteceu com os medicamentos de hepatite C, segundo o estudo.
Para o Médicos Sem Fronteiras, é importante a retirada de propostas europeias que “poderiam potencialmente aumentar os custos de tratamentos médicos, criando novos monopólios e atrasando a entrada de genéricos acessíveis no mercado”. De acordo com a ONG, se as cláusulas de propriedade intelectual propostas pela UE forem incluídas no acordo final, o acesso a medicamentos essenciais será restringido para milhões de pessoas no Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. E a capacidade desses países de promover reduções globais dos preços será seriamente prejudicada.
Outra inquietação da ONG é a proposta de Bruxelas sobre exclusividade de dados, pela qual, por um período de tempo determinado, pede-se às autoridades reguladoras de medicamentos que suspendam o registro de medicamentos genéricos. Essa prática pode bloquear a entrada de genéricos mesmo que não haja patente em vigor para um medicamento correspondente.
Cita também medidas alfandegárias que aleguem a violação de patentes vão além do acordo Trips e podem levar à apreensão de medicamentos genéricos legítimos que estejam em trânsito.
Fonte: InfoMoney