Futebol e Valores Mobiliários: SAF, Mercado de Capitais e o Parecer n. 41/CVM

Desde o advento da Lei n. 14.193/2021, que instituiu a famigerada Sociedade Anônima de Futebol (SAF), seis clubes da Série A do Brasileirão aderiram ao modelo

Matheus Kniss

A promulgação da Lei n. 14.193/2021 (“Lei da SAF”), que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), representa um marco na profissionalização da indústria futebolística brasileira. Ao permitir que clubes se transformem em sociedades empresárias (como é o caso da sociedade anônima), a legislação abriu caminho para que o futebol acessasse o mercado de capitais, com potencial de reestruturação financeira, governança aprimorada e atração de investimentos. Além disso, os clubes de futebol que aderiram à SAF também abriram caminho para outros benefícios cabíveis apenas às sociedades consideradas empresárias, como é o caso da falência e da recuperação judicial.

Atualmente, seis clubes da Série A do Campeonato Brasileiro são SAF: Atlético/MG (controlado pelo empresário Rubens Menin), Vasco/RJ (atualmente sob o controle de 777 Partners), Bahia/BA (controlado pelo Grupo City, detentor do Manchester City/ING), Botafogo/RJ (sob as ordens de John Textor); Cruzeiro/MG (com Pedro Lourenço, o Pedrinho BH) e Fortaleza/CE (cujas ações ainda pertencem integralmente ao próprio clube).

Red Bull Bragantino, embora clube-empresa, não é uma SAF, por ter sido constituído como sociedade limitada antes da entrada da lei em vigor.

1. SAF: Subtipo Societário com Vocação Empresarial

A SAF é regida pela Lei da SAF e, subsidiariamente, pela Lei n. 6.404/1976 (“Lei das S/A”). É um subtipo societário voltado à prática profissional do futebol, com estrutura jurídica que permite a emissão de valores mobiliários e a abertura de capital. A CVM, por meio do Parecer n.41/2023, autorizou a conversão das SAF em companhias abertas, bem como a captação de recursos junto ao público investidor, desde que observadas as exigências legais e regulatórias.

2. Formação do Capital Social e Avaliação Patrimonial

A constituição da SAF pode ocorrer por transformação, cisão, iniciativa privada, enfim, qualquer dos métodos aplicáveis à sociedade anônima convencional. O capital social pode ser integralizado com ativos tangíveis e intangíveis, como marca, direitos sobre atletas e uso de instalações. A avaliação desses bens deve seguir critérios técnicos e contábeis, com atuação de peritos e auditoria registrada na CVM, especialmente quando houver intenção de acessar o mercado de capitais. A exceção, neste ponto, é o Red Bull Bragantino, cujo modelo societário diferenciado (sociedade empresária limitada) não permite, sem uma transformação para SAF, o acesso ao mercado de capitais como os demais. 

3. Classes de Ações e Direitos Especiais

A Lei da SAF cria a classe de ações ordinárias Classe A, exclusiva do clube ou entidade original. Essa classe confere direitos especiais, como veto em decisões estratégicas (alienação de patrimônio, reorganização societária, mudança de sede, etc.). A CVM admite a coexistência de outras classes de ações ordinárias e preferenciais, desde que respeitados os limites legais e os direitos da Classe A.

4. Governança e Controle

A governança da SAF é regulada por regras específicas, com proibição de controle cruzado entre SAF. Acionistas com participação relevante em mais de uma SAF perdem direito de voto e de participação ativa nas deliberações. A estrutura administrativa exige Conselho de Administração e Conselho Fiscal permanentes, com aplicação subsidiária das normas da Lei das Sociedades por Ações.

5. Instrumentos de Captação no Mercado de Capitais

A SAF pode se valer de procedimentos de abertura de capital (IPO), emissão de debêntures-fut (instrumento exclusivo da SAF), crowdfunding de investimento (com receita até R$ 40 milhões), fundos de investimento (FIP, FII, FIDC) e/ou securitização de recebíveis (como bilheteria, direitos de transmissão e naming rights).

Cada instrumento exige atenção à regulação da CVM, à transparência informacional e à adequação ao perfil do investidor (suitability).

6. Transparência e Comunicação 

A SAF deve observar as normas de divulgação de informações, especialmente em ofertas públicas. A CVM alerta para o risco de decisões emocionais por parte de torcedores-investidores e recomenda linguagem clara e equilibrada nos documentos da oferta. A comunicação deve ser transparente também em relação ao Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), obrigatório por lei.

7. Limites da Regulação da CVM

Fan tokens (como os de programas de sócios-torcedores, por exemplo) e apostas esportivas não são valores mobiliários e, portanto, estão fora de sua competência. O foco da Autarquia está na regulação de instrumentos que envolvam captação de recursos com expectativa de retorno econômico.

Conclusão

A SAF inaugurou uma nova fronteira entre futebol e mercado financeiro. Ao permitir que clubes se tornem emissores de valores mobiliários, a legislação criou oportunidades de financiamento, profissionalização e democratização do investimento.

O Parecer CVM n. 41/2023 oferece diretrizes valiosas para que essa transição ocorra com segurança jurídica, transparência e respeito ao investidor.

Matheus Kniss é especialista em planejamento sucessório e patrimonial, negócios e reestruturações societárias no Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica.